Friday, September 16, 2005

Kung Fu Style

Intrigantes caminhos do cinema da Ásia e da América do Norte.
Kitano e Tarantino

Alessandro Bender

Confesso que não assisti ao Kill Bill 2. Confesso também que achei muito chato o Kill Bill 1. Muitos amigos meus disseram que só entenderei e acharei legal o 1 quando assistir o 2, mas desta vez deixo passar e agradeço o conselho.

Kitano e Tarantino são dois cineastas que trabalham com a violência. Não querem discutir a violência, sua vertente estética á a violência. Muito diferente de Sam Peckinpah, que trazia a questão da violência para dentro de seus filmes. A explosão da energia contida, não canalizada adequadamente, conflitos internos. Violência em Peckinpah é pulsão, explosão.

Tarantino é a essência do Fake, da violência como Farsa. Extrapola a dimensão para atingir um grau quase cômico, uma sensação de "Ora bolas, isto aqui é apenas entretenimento, e o sangue sempre foi catchup". Alguns lêem como uma crítica ao entretenimento. Honestamente não acredito. É a mesma lógica de alguns cineastas ditos "marginais" no Brasil quando faziam filmes recheados de mulher pelada e que pretendiam inserir uma "mensagem" por trás daquilo.
Quem assiste filme de mulher pelada quer mulher pelada. Com ideologia ou não. Este papo de crítica social, uso da linguagem popular, tudo bobagem. Não vai ser através deste meio que alguma reflexão será disparada. Não funcionou como crítica no Brasil das Embrafilmes, não funciona criticar a indústria do entrentenimento de dentro dela, como querem alguns críticos do Tarantino.
Acho que Tarantino, como todo ser humano, gosta de conforto, de ser assediado e de receber aplausos. Para alguém que começou como funcionário de videolocadora, a oportunidade de namorar a Uma Thurman em Cannes é mais saborosa que ficar fazendo crítica e correr o risco de voltar para a locadora. Este tipo de risco só passa na cabeça de quem tem algo a falar.
Desde o Cães de Aluguel Tarantino tem feito bons filmes de entretenimento. Ele sabe conduzir bem a platéia e traz um sabor diferente, muito marcado pela produção televisiva, seriados baratos e antigos. Tarantino é uma espécie de visionário do movimento atual de culto aos anos 70,80, bem ao gosto dos 80's Trash fans.
A busca pelo trash, pelo estilização do mau-gosto tem alguns predecessores, como o Roger Corman, que fez coisas maravilhosas com gosto de Anti-Grease, um TransGrease na verdade, além do Over.
Mas Corman tem um foco diferente do de Tarantino. Existe uma espécie de saudosismo, de tentar voltar no tempo, como se fosse possível reviver algo que não existe mais.

Semana passada tive a oportunidade de assistir ao Zatoichi do Takeshi Kitano. Não sei se recomendo asistir o filme. Eu gostei muito, e acho que existe um contato interessante com a produção de Tarantino.

Zatoichi é um filme ambientado no Japão feudal, bem ao estilo de filmes de Kung Fu baratos dos anos 70, bebendo de certa forma na mesma fonte que Tarantino bebe.
Mas o que interessa nesta história cheia de lutas e de sangue é o ruído que Kitano traz à narrativa. Existem alguns elementos que não concatenam com o "tradicional filme de karatê" esperado. Primeiro o fato do protagonista - Zatoichi - ser um massagista cego. Não me lembro de nenhum personagem assim. E ele, apesar de ser chamado de massagista por todos os personagens, apenas em uma cena ele faz massagem, durante alguns segundos. Ser massagista, no caso, não interessa nem faz parte da trama. Não há conexão nenhuma no roteiro, nem isto o faz mais ou menos perante as circunstâncias. Ele poderia ser padeiro ou jogador de futebol, que nada mudaria na história.
Mas aí vem o reforço de ser cego. Junto ao fato de ser massagista, o fato de ser cego fragiliza a figura do protagonista, que inclusive não tem nenhuma atitude digna de admiração ou de destaque. Eis aí nosso anti-herói. Porém, para a tradição cinematográfica ocidental, anti-herói e outsider são quase sinônimos. E no caso de Zatoichi, outsider está mais para personagem sem importância. Eu chegaria a dizer que Zatoichi é "bonzinho", no que há mais de pejorativo no termo. E a última coisa que um Outsider ocidental poderia ser é "bonzinho".
Outro elemento importante e curioso é a trilha sonora e algumas cenas coreografadas. Existem alguns agricultores no filme que, sem razão aparente "batucam" suas enxadas como uma banda como o Stomp ou os Barbatuques brasileiros. É um ritmo contemporâneo, que destoa do resto do filme e não pontua nada. Não há razão aparente para eles batucarem ou não. De vez em quando a câmera flagra estes personagens sem importância na narrativa e simplesmente deixa-os executar alguns malabarismos sonoros, e o filme continua depois, ponto.
Há algo de intrigante e esquisito na construção de Kitano. Mais do que algo preciso, parece um ruído, um chiado mental, que não conecta, não dá fluidez e andamento ocidental, e pelo que me parece, nem oriental.
É aquele momento em que nos perguntamos se o autor está fazendo aquilo de propósito ou se o cara é ruim mesmo. Bobeou a montagem ficou tosca e alguém deixou passar.
Mas não parece ser o caso do Kitano. São muitos elementos, pequenos é verdade, mas muitos, durante o filme, que levam o espectador para fora da trama, fora do formato. Arestas mal-aparadas.

Meu gosto particular - Acho ruído e sujeira muito interessante, quase como um discurso da imperfeição, do não funcional, do Ghost in Machine misturado ao belo que vemos no artesanal.

No final do filme Kitano explicita sua atitude - O filme, que é todo ambientado no império Edo, vira um musical e todos os atores ficam sapateando uma música ocidentalizada enquanto o letreiro passa. Chorus Line. Ponto. Assume-se a farsa, o que era ruído se torna padrão, a exceção vira a regra e obriga o espectador a reler o filme inteiro, ou odiar o Kitano para todas as próximas reencarnações. Mais do que isto, no último suspiro do filme o personagem comete um deslize que rompe com a construção esquisita do massagista bonzinho bom de luta. Se ele cometesse este erro durante qualquer momento anterior, o filme simplesmente desandaria de vez, pois a única habilidade que ele tinha ele deixa de ter. Depois de construir um personagem imune a tudo, Kitano apresenta uma vulnerabilidade banal que literalmente o derruba.

O foco de Kitano é na desconstrução do arquétipo, enquanto o foco de Tarantino é o Overacting do Estereótipo do filme japonês, do karatê e coisas do gênero. Como se Tarantino estivesse preso dentro de seu modelo e precisasse, de alguma maneira, ampliá-lo. Mas só conseguisse inchá-lo até o limite do insuportável.

O que parecem ser duas pontas de um mesmo trajeto - Um ocidental em direção ao Oriente e vice-e-versa acaba sendo uma categorização da ausência de diálogo entre estes dois mundos.

Kitano, como Tarantino, são representantes no mainstream do que é chamado cinema alternativo, diferente, estranho, e evidentemente violento. Mas não há semelhança nenhuma entre as violências cinematográficas dos dois.